Não vou dizer nada que Gil Vicente já não tenha dito melhor em "O Auto da Barca do Inferno". Segue trecho:
Vem um homem que morreu Enforcado,
e, chegando ao batel dos malaventurados,
diz o barqueiro ao que chega:
DIABO
Vamos embora, enforcado!
Que diz lá o Garcia Moniz? (*)
[(*)Figura provavelmente conhecida à época, cuja identidade é hoje desconhecida e dada a muita suposição.
Seria alguém importante na corte portuguesa]
ENFORCADO
Eu te direi que ele diz:
Que fui bem-aventurado
Em morrer dependurado (pendurado)
Como o tordo na buiz, (armadilha)
E diz que os feitos que eu fiz
Me fazem canonizado. (me fazem santo)
DIABO
Entra cá, e governarás (guiarás o barco)
Até às portas do Inferno.
ENFORCADO
Não é essa a nau que eu quero.
DIABO
Digo-te eu que aqui irás.
ENFORCADO
Oh! Isso não, por Barrabás! (*)
Então se Garcia Moniz dizia
Que os que morrem como eu
Ficam livres de Satanás...
[(*)O criminoso que foi libertado no lugar de Cristo a pedido da população enraivecida]
E disse que Deus quisera
De ser eu enforcado;
E que fosse Deus louvado
Pois em boa hora eu nascera;
E que o Senhor me escolhera;
E que por bem vi os beleguins. (pelo seu bem, foi levado aos oficiais da justiça)
E com isto mil latins,
Muito lindos, feitos de cera. (*)
[
(*) Mil latins serão os discursos jurídicos e religiosos, de cera serão as velas. Para o enforcado, um
condenado simplório, faz tudo parte da mesma coisa]
E, no passo derradeiro,
Disse-me nos meus ouvidos
Que o lugar dos escolhidos
Era a forca e o Limoeiro; (*)
[(*) O Limoeiro era uma prisão da altura em Lisboa com a reputação de ser muito dura.]
Nem guardião do mosteiro
Tinha tão santa gente
Como o Afonso Valente
Que é agora carcereiro.
DIABO
Dava-te consolação isso,
Ou algum esforço? (*)
[(*)Pergunta o Diabo ao Enforcado se aqueles suplícios que passara na prisão, mais as rezas de penitência,
lhe valeram de alguma coisa. O Diabo pergunta isto, como já se verá, para saber se o enforcado morreu
arrependido dos seus pecados e se o seu sofrimento lhe serviu de expiação dos males que antes cometera e se
encontrou salvação da sua alma através das palavras das rezas.]
ENFORCADO
Aquele com a corda ao pescoço,
De muito pouco serve a pregação...
E apenas leva a devoção
De que há de voltar a jantar...
Mas quem há de estar no ar (há de ser pendurado pela forca)
Aborrece-se com o sermão.
DIABO
Entra, entra no batel,
Que ao Inferno hás de ir!
ENFORCADO
O Moniz esteve a mentir?
Disse-me que com São Miguel
Eu jantaria pão e mel
Assim que fosse enforcado.
Ora, eu já passei o meu fado,
E já feito é o burel.(*) (e já passei o que tinha a passar)
[(*) Burel era um tecido de artesanal feito de lã. "Já é feito o burel" era uma expressão utilizada para
dizer que "o trabalho já está feito ou cumprido" ou "já se fez o que se tinha a fazer"]
Agora não sei o que é isto:
Ele não me falou ele em ribeira,
Nem em barqueiro, nem em barqueira,
Apenas no Paraíso.
Isto muito no seu juízo.
E que era santo o meu baraço... (era abençoada a minha corda)
Eu não sei que aqui faço:
Que é desta glória improviso? (que espécie de glória é esta?)
DIABO
Falou-te no Purgatório?
ENFORCADO
Disse que era o Limoeiro, (que o purgatório era a prisão)
E com ele o saltéiro (o livro de salmos)
E o pregão vitatório; (o discurso que se dizia antes de se enforcar alguém)
E que era muito notório
Que aqueles disciplinados (aqueles castigos)
Eram horas dos finados (eram bênçãos para os condenados)
E missas de São Gregório.
DIABO
Quero-te desenganar:
Se o que tivesses aceitado,
Certo era que te salvavas.
Mas não o quiseste aceitar... (*)
[(*) Diz o Diabo que se os tormentos e as rezas, que o Enforcado levou na prisão, lhe tivessem servido
como expiação dos seus pecados, ter-se-ia salvado. Mas como não levou os castigos as rezas a sério para
pedir perdão pelos erros do passado, vai para o inferno.]
quarta-feira, março 01, 2017
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