quarta-feira, março 01, 2017

Sobre a liberação do goleiro Bruno

Não vou dizer nada que Gil Vicente já não tenha dito melhor em "O Auto da Barca do Inferno". Segue trecho:

Vem um homem que morreu Enforcado,
e, chegando ao batel dos malaventurados,
diz o barqueiro ao que chega:

DIABO
Vamos embora, enforcado!
Que diz lá o Garcia Moniz? (*)
[(*)Figura provavelmente conhecida à época, cuja identidade é hoje desconhecida e dada a muita suposição. Seria alguém importante na corte portuguesa]

ENFORCADO
 Eu te direi que ele diz:
Que fui bem-aventurado
Em morrer dependurado (pendurado)
 Como o tordo na buiz, (armadilha)
E diz que os feitos que eu fiz
Me fazem canonizado. (me fazem santo)

DIABO
 Entra cá, e governarás (guiarás o barco)
 Até às portas do Inferno.

ENFORCADO
Não é essa a nau que eu quero.

DIABO
 Digo-te eu que aqui irás.

 ENFORCADO
 Oh! Isso não, por Barrabás! (*)
 Então se Garcia Moniz dizia
Que os que morrem como eu
Ficam livres de Satanás...
[(*)O criminoso que foi libertado no lugar de Cristo a pedido da população enraivecida]
E disse que Deus quisera
De ser eu enforcado;
E que fosse Deus louvado
 Pois em boa hora eu nascera;
E que o Senhor me escolhera;
 E que por bem vi os beleguins. (pelo seu bem, foi levado aos oficiais da justiça)
E com isto mil latins,
Muito lindos, feitos de cera. (*) [
(*) Mil latins serão os discursos jurídicos e religiosos, de cera serão as velas. Para o enforcado, um condenado simplório, faz tudo parte da mesma coisa]
 E, no passo derradeiro,
Disse-me nos meus ouvidos
 Que o lugar dos escolhidos
Era a forca e o Limoeiro; (*)
 [(*) O Limoeiro era uma prisão da altura em Lisboa com a reputação de ser muito dura.]
Nem guardião do mosteiro
Tinha tão santa gente
 Como o Afonso Valente
Que é agora carcereiro.

 DIABO
 Dava-te consolação isso,
 Ou algum esforço? (*)
 [(*)Pergunta o Diabo ao Enforcado se aqueles suplícios que passara na prisão, mais as rezas de penitência, lhe valeram de alguma coisa. O Diabo pergunta isto, como já se verá, para saber se o enforcado morreu arrependido dos seus pecados e se o seu sofrimento lhe serviu de expiação dos males que antes cometera e se encontrou salvação da sua alma através das palavras das rezas.]

ENFORCADO
Aquele com a corda ao pescoço,
De muito pouco serve a pregação...
E apenas leva a devoção
De que há de voltar a jantar...
Mas quem há de estar no ar (há de ser pendurado pela forca)
Aborrece-se com o sermão.

DIABO
 Entra, entra no batel,
Que ao Inferno hás de ir!

ENFORCADO
 O Moniz esteve a mentir?
Disse-me que com São Miguel
 Eu jantaria pão e mel
 Assim que fosse enforcado.
 Ora, eu já passei o meu fado,
E já feito é o burel.(*) (e já passei o que tinha a passar)
 [(*) Burel era um tecido de artesanal feito de lã. "Já é feito o burel" era uma expressão utilizada para dizer que "o trabalho já está feito ou cumprido" ou "já se fez o que se tinha a fazer"]
Agora não sei o que é isto:
Ele não me falou ele em ribeira,
 Nem em barqueiro, nem em barqueira,
 Apenas no Paraíso.
 Isto muito no seu juízo.
 E que era santo o meu baraço... (era abençoada a minha corda)
 Eu não sei que aqui faço:
Que é desta glória improviso? (que espécie de glória é esta?)

 DIABO
 Falou-te no Purgatório?

ENFORCADO
 Disse que era o Limoeiro, (que o purgatório era a prisão)
 E com ele o saltéiro (o livro de salmos)
 E o pregão vitatório; (o discurso que se dizia antes de se enforcar alguém)
 E que era muito notório
Que aqueles disciplinados (aqueles castigos)
 Eram horas dos finados (eram bênçãos para os condenados)
E missas de São Gregório.

 DIABO Quero-te desenganar:
 Se o que tivesses aceitado,
 Certo era que te salvavas.
Mas não o quiseste aceitar... (*)
[(*) Diz o Diabo que se os tormentos e as rezas, que o Enforcado levou na prisão, lhe tivessem servido como expiação dos seus pecados, ter-se-ia salvado. Mas como não levou os castigos as rezas a sério para pedir perdão pelos erros do passado, vai para o inferno.]