terça-feira, dezembro 23, 2014

Cartas entre Maquiavel e Guicciardini - ou: Aqui Jaz o Paradoxo do Mentiroso

Tive um semestre bastante atarefado, mas deu para conseguir alcançar e ultrapassar tranquilamente a minha meta de ler 12 livros este ano. E de fazer uma traquinagem: retomando a minha tese de mestrado, e motivado pelo livro MARAVILHOSO de Olavo de Carvalho sobre Maquiavel, resolvi traduzir a troca de correspondências entre Nicolau Maquiavel e Francesco Guicciardini (para quem não sabe, quem cunharia o termo "Renascimento"), que contém o fatídico paradoxo de mentiroso. A tradução foi baseada na versão inglesa e revisada em cima da italiana (que podem ser vistas aqui http://www.classicitaliani.it/machiav/mac64_let_07.htm) . Considerando que não sou um tradutor profissional, me perdoem

O contexto é o seguinte: Maquiavel havia caído em desgraça em Florença após a queda da república, e vivia de uns bicos que conseguia graças à sua experiência prévia como diplomata. No caso em questão, ele estava tendo como missão pela à guilda dos tecelões/fabricantes de lã de Florença para conseguir um padre em Capri para rezar uma missa em uma efeméride especial (não sei se a Páscoa ou o Natal), como era tradição. Guicciardini então, no dia 17 de maio de 1521, resolve tirar uma troça dele:

"Meu caro Maquiavel,

Foi certamente um bom julgamento por parte de nossos reverendos cônsules da guilda ter confiado a você, em vez de a Pacchierotto, enquanto ele estava vivo, ou a Sano para encontrar uma mulher bonita e graciosa para um amigo [nota: Pacchierotto e Sano eram dois notórios homossexuais]. Acredito que você servirá a eles de acordo com as expectativas que têm de você e como é necessário para sua honra, que seria manchada se, a essa altura do campeonato, você começasse a se preocupar com o destino de sua alma; porque, uma vez você sempre viveu uma crença contrária, isso seria atribuído mais à senilidade do que à vontade. Lembre-se de cumprir sua missão o mais rápido possível, pois caso você permaneça muito por aí poderão ocorrer dois perigos: o primeiro é que esses santos frades não te infectem com a doença da hipocrisia; o outro, é que essa atitude de Carpi não torne você um mentiroso, porque essa é  sua influência - não só nesta era, mas daqui a muitos séculos. E se por desgraça você for alojado na casa de algum carpigiano [nota: realmente não sei o gentílico de Capri...], saiba que nesse caso não haverá remédio,
Se você visitar o bispo governador [de Carpi], verá uma bela forma de homem para que aprenda mil astúcias e amabilidades. Minhas recomendações"

Maquiavel respondeu no mesmo dia:

"Vossa magnificência, o meu mais profundo apreço.

Eu estava sentado na latrina quando chegou sua mensagem, e pensava precisamente sobre as extravagâncias deste mundo. Estava completamente absorto imaginando meu estilo de pregador em Florença, que deveria ser tal que me desse prazer, e que nisso eu queria que fosse tão teimoso como em outros assuntos. E como eu nunca falhei com meu dever com aquela República não ajudando quando pudesse - se não com trabalhos, ao menos com palavras; se não com palavras, ao menos com gestos - eu não pretendo falhar com ela nisto. É verdade que me difiro de meus concidadãos nisso e em muitas outras coisas. Eles queriam um pregador que os ensinasse a via do Paraíso, e eu queria encontrar que os ensinasse o caminho para que fossem para o diabo. Além disso, eles queriam que esse homem fosse prudente, inteiro e real, e eu queria encontra rum mais louco que Ponzo [frade do tempo de Savonarola notável por seu temperamento bizarro], mais astuto que Girolamo [Savonarola] e mais hipócrita que frei Alberto [possível referência a uma personagem de Boccaccio], pois me parece uma coisa bela - e digna da bondade destes tempos - que tudo aquilo que nós experimentamos em muitos frades se experimente em apenas um. Pois eu creio que seria justamente isso a verdadeira maneira de se alcançar o Paraíso: aprender o caminho certo para o Inferno para escapar dele. Vendo, além disso, quanto crédito se dá a um desgraçado que sob o manto da religião se esconde, se pode facilmente conjeturar quanto crédito um homem bom poderia receber se verdadeiramente, e não fingindo, marchasse sobre as pegadas lamacentas de São Francisco. Como essa linha de pensamento me agrada, eu pretendo selecionar Rovaio, e penso que se ele for como seus irmãos e irmãs, ele será a escolha perfeita. Eu apreciaria sua opinião a esse respeito caso me escreva de novo.

Estou aqui ocioso, pois não posso executar a missão que me dera até que o general e seus assessores sejam eleitos, e fico imaginando de que forma poderia causar tanto escândalo entre esses frades que eles pudessem, aqui e em outros lugares, se baterem com suas sandálias. Se não perdesse meu juízo acredito que poderia ser bem-sucedido, e penso ainda que  o conselho de vossa senhoria me seria de grande valia. Portanto, se você viesse para cá sob o pretexto de uma viagem de férias, não seria mal; ou, pelo menos, desse algum golpe de mestre para aplicar nos frades. De fato, se você continuasse mantendo contato comigo, me mandando uma mensagem por dia - como você fez hoje -, você me ajudaria bastante. Primeiro, você me clarificaria algumas coisas e me aconselharia sobre como fazer isso. Segundo, você aumentaria meu prestígio aqui, quando os padres vissem os despachos seguindo seu rumo. Deixe me dizer a você: quando seus arqueiros [de bestas] chegaram com sua carta, dizendo que ela fora mandada especialmente e com urgência, cada um dos padres se levantou com tanta reverência e tanto alvoroço que tudo virou de pernas para o ar, e muitos deles me perguntaram sobre o quê se tratava. E eu, para aumentar a minha importância, dizia que o Imperador estava aguardando em Trento, que os suíços convocavam novas dietas e que o rei da França gostaria de se encontrar pessoalmente com aquele governante, mas que seus conselheiros o estavam aconselhando em contrário, de mo do que todos eles ficaram de boca aberta e de chapéu na mão. Mesmo enquanto escrevo há um círculo de frades ao meu redor, se maravilhando me tomando como inspirado. E eu, para maravilhá-los ainda mais, às vezes interrompo o que estou escrevendo e respiro profundamente. Eles começam a babar. Se eles soubessem que escrevo para você se maravilhariam ainda mais. Vossa senhoria sabe que esses frades dizem quando alguém está em estado de graça: "o diabo não tem o poder para tentá-lo". Assim, eu não tenho medo que esses frades venham me infectar com sua hipocrisia, uma vez que penso estar muito bem confirmado [referente ao sacramento].

Quanto às mentiras do povo de Capri, eu posso desmascará-los à todos. Há muito tempo que me doutorei nessa arte, bem o bastante para não tomar um Francesco Martelli como garoto de recados. Porque, de uns tempos para cá, eu não falo mais aquilo que acredito, nem acredito mais naquilo que falo. E se, de fato, por vezes disser a verdade, eu a escondo atrás de tantas mentiras que é difícil encontrá-la.

Eu não falei com o governador porque, não tendo encontrado alojamento, me pareceu que seria inútil falar com ele. É verdade que pela manhã eu vi por algum momento na igreja enquanto procurava algumas pinturas. Parece-me que ele foi concebido perfeitamente: uma vez que a parte corresponde ao todo, podemos então acreditar que ele é o que aparenta ser: sua deformidade não mente. Se eu tivesse sua carta comigo, teria recolhido um balde [de dinheiro] com ela. Mas não consegui nada, e espero que amanhã eu receba seus conselhos sobre como devo proceder.

Espero que você me envie alguns de seus arqueiros, fazendo com que eles corram e cheguem aqui tão sutilmente que as pessoa fiquem espantada. Fazendo isso, você me honraria e daria um pouco de exercício a eles, o que é muito útil para os cavalos nessa época do ano. Eu escreveria mais para você se eu quisesse cansar a minha imaginação, mas eu quero mantê-la o mais fresca possível para amanhã. 

Recomendações a vossa senhoria, quae semper ut vult valeat"